Monday, December 23, 2002



DIA 4 - De Copacabana à Puno

Ontem acabei esquecendo de falar sobre a Ilha do Sol. E não dá pra passar assim batido, afinal o lugar é maravilhoso. Fez valer todo o frio que passamos no barco até chegar lá.

Após atravessarmos metade do Lago Titicaca (olha que isso é água que não acaba mais...), nos aproximamos da ilha, contornamos um pouco um trecho bastante árido da costa e entramos numa pequena baía onde os barcos podem atracar.

A baía é linda. Ainda por cima, demos sorte com o tempo - o céu aberto e o sol forte deixaram a água do lago num azul espetacular. À primeira vista, a Ilha do Sol lembra uma daquelas praias mais isoladas da Ilha Grande, no Rio de Janeiro. Areia clara, vegetação ao fundo, poucos sinais de civilização, alguns casebres poucos, bicho-grilos tocando violão na praia.

Um pouco mais tarde, ao se adentrar na ilha e começar a subir pela encosta através de uma velha escadaria de pedra, a paisagem começa a mudar. E o que parecia uma praia paradisíaca qualquer, vai ganhando detalhes de uma Bolívia de muitos anos atrás.

As montanhas que contornam a baía sobem de forma bastante íngreme e, por todas elas, vêem-se pequenas plantações e casebres de pedra equilibrando-se pelas encostas. Subindo a escadaria, é preciso desviar-se de alguns carneiros, porcos e até llamas. Lá embaixo a praia vai ficando mais bonita. contornada pela moldura colorida dos diversos tons de verde separados pelas cercas de pedra.

Entre nós, gringos, também vão subindo a montanha as donas do local, algumas velhas bolivianas com fortes traços indígenas, trajes típicos e aquele característico chapéu de coco engraçado. É claro, o ponto é turístico e como tal, milhares de chiquititas, devidamente vestidas folcloricamente e postadas em locais estratégicos, não páram de oferecer-se para fotos e consequentes gorjetas.

Lembrei das longíquas aulas de literatura, quando os poetas clássicos enalteciam a vida pastoral. Essa era a palavra que me veio à cabeça. Tudo aquilo formava uma paisagem pastoral, totalmente bucólica. E lá na frente, do outro lado da imensidão do lago, uma cordilheira de picos nevados postava-se no horizonte.

Fica a dica: é possível passar a noite na Ilha. Existem algumas pensões com preços acessíveis. Eu perdi a oportunidade, mas com certeza vale a pena.

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Mas isso foi ontem...

Hoje pela manhã, para aproveitar o tempo que tinha antes de tomar o ônibus para Puno, resolvi subir outra escadaria de pedra. Desta vez, a da montanha que fica ao lado da praia de Copacabana.

Na verdade, o caminho da escadaria é literalmente um calvário. A cada patamar encontra-se um altar representando as doze etapas do calvário de Cristo.

A paisagem lá de cima é impressionante. Mas haja joelhos...

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No caminho fui conversando com Stefania, a italiana que conheci ontem no passeio de barco. Formada em Literatura pela medieval Universidade de Bologna, fã de música brasileira, leitora de Jorge Amado e Clarice Lispector, trinta e sete anos de idade. Muito legal, gente finíssima, cabeça aberta. Talvez aberta demais, pois parece que ainda não achou seu caminho.

Conversamos sobre profissões e vocações. Ela se formou, não se empregou, agora viaja. Por algum motivo que não entendi e que talvez nem ela saiba, quer sair da Itália. Chegou até a entrar em contacto com algumas ONGs da América Latina, tem interesse grande por causas humanitárias.

Falando assim parece que ela é algum bicho-grilo. Mas não é preciso ser bicho-grilo para se sentir perdido nesta vida.

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Tomei uma xícara de chá de coca pela manhã e depois masquei algumas folhas durante a subida da escadaria. Parece que ajudou no fôlego. Na verdade, não tenho muita certeza, mas dizem que ajuda. Cheguei lá em cima com a gargante um pouco dormente. Mas passou logo.

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Lá em cima do calvário, onde a vista de Copacabana é linda, encontramos Hugo. Hugo que é italiano e que puxou conversa conosco pois ouviu
uma conversa a respeito do Rio Pó, o maior da Itália. Hugo, psicanalista de Torino, trabalha hoje na Associação das Mães da Praça de Maio, em Buenos Aires. Ajuda na procura pelos filhos dos desaparecidos durante a ditadura militar argentina. Passa curtas férias na Bolívia, pois no dia 4 de dezembro volta para uma grande passeata no centro da capital argentina. Foi no início do ano ao Fórum Social de Porto Alegre. Deve ter, no mínimo, mais de cinquenta anos de idade. Conta tudo com brilho nos olhos. Bonito.

Isso é o que chamo de social-globalização...

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Despedidas são despedidas. Mesmo aquelas de amigos que se fez ontem.

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Na viagem de Puno me deu uma sensação de felicidade. Como se caísse a ficha, caramba, olha só, estou aqui fazendo o que tinha planejado. É bom por o pé na estrada. Apesar da saudade dos que estão em casa, era bom estar ali. Sem ansiedade de cumprir a missão, chegar ao objetivo. Sem pressa de terminar ou medo de começar. Apenas ali, andando para frente, naquele momento.

As montanhas iam passando na janela, cada vez maiores e mais verdes.

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Chegando a Puno, começou a chover. Acabei tendo que me alojar no primeiro hotel encontrado, apesar de tê-lo achado meio caro. Sensação ruim.

Saí um pouco depois para procurar a passagem de trem para Cuzco. Muito cara, cinquenta dólares. Ainda chovia e acabei me molhando todo para nada - optei por ir de ônibus e comprei a passagem no hotel mesmo.

Meu humor foi lá pra baixo. Calça e tênis encharcados. Medo de dor de garganta. Joelho inchado. Acho que é hora de descansar e se cuidar um pouco: banho quente, spray de própolis, pomada Gelol e 100 páginas do livro do André Takeda para lavar a alma.

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E amanhã, rumo à estação Cuzco...