DIA 1 - De São Paulo a La Paz
Estava ansioso no carro. Fiquei também um tanto nervoso no avião. Medo de avião, agora? Até parece que nunca viajei antes. Mas sei que o medo não é do avião. O medo é de ir, de ir sozinho, de ter que lidar comigo mesmo, por minha conta e risco. Vai ser muito bom, é claro, mas nem essa crença me faz ficar menos ansioso na saída de São Paulo.
Pode parecer coisa de criança, irracional e besta, mas sei que isso é normal. Afinal é a primeira vez que vou ficar realmente sozinho após um ano e meio de mudanças, encanações e crises de ansiedade. Mesmo com tudo já resolvido, estar em casa é sempre confortável. Agora é enfrentar-se em campo neutro.
Vai ser ótimo isso. Encarar os medos, deixar o negativismo de lado. Mudar de ares, ter nova rotina, ver novas pessoas. Eu por mim mesmo, aproveitar. E parar de dramatizar a vida, por mais que já esteja fazendo isso aqui.
Só sei que aqui neste quarto laranja, já com as narinas secas pelo ar rarefeito da altitude, já me sinto bem. Só o começo...
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O danado vôo de ida para La Paz tinha duas escalas. Maldito pinga-pinga de três decolagens e três aterrissagens. Mas a ansiedade ficou apenas com a primeira das decolagens.
Ainda na pista de Santa Cruz de la Sierra, a primeira escala, engatei uma conversa com um senhor que viajava para Cochabamaba, minha segunda escala. Era professor, inglês e ia fazer uma palestra.
Já tinha ensaiado um início de conversa antes. Mas sempre algum receio me travava e acabava não dizendo nada. Essa minha timidez é engraçada, fico alternando a vontade de dizer algo com o receio de tomar a iniciativa. Objetivamente, acho que é medo dizer algo tolo, de incomodar ou, nesta situação especificamente, que o gringo não entenda o que eu disser. Besteiras de pensar demais.
Vencida esta etapa, tasquei um comentário sobre alguma futilidade (coisa como o fuso horário da Bolívia...) e aí começamos a conversar. O sujeito é professor de uma universidade sueca, arquiteto, e trabalha com alguns convênios que essa universidade possui com cidades do 3º mundo. Faz uma espécie de assessoria em projetos de planejamento urbano e de melhoria social destas cidades.
Falei um pouco de mim também, do que fazia, etecéteras, e foi isso. Papo simples, curto, mas agradável. Ao invés de me lamentar por não ter falado nada, uma sensação boa de dever cumprido. Como já disse a Má, em uma daquelas declarações de alto-impacto que a gente nunca esquece, preciso começar a não me achar tão desinteressante. E saber que outras pessoas também gostam do contato, da gentileza, da proximidade.
No mínimo, a conversa amenizou a espera pelos pousos e decolagens.
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A população boliviana no vôo da LAB era composta por pouca gente bonita, mas também por pouca gente com o tradicional e caricato biotipo indígena.
Desconfio que a razão seja o fato de que os índios aqui são a maioria e, como toda a maioria, são pobres. O pessoal herdeiro da colonização espanhola forma a classe dominante, mais abastada e que viaja de avião.
Está na cara deles.
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Com o perdão do trocadilho, chega-se em La Paz literalmente pelas alturas. O aeroporto fica a uma altitude de 4000 mil metros acima do nível do mar, numa região ainda acima do nível da cidade, uns 3800m. Assim, mesmo sendo a capital mais alta do mundo, para chegar a La Paz você ainda tem que descer uma pequena serra em direção ao centro do vale onde a cidade se localiza.
Uma série de prédios muito altoe se enfileira pelo meio do vale. Ao redor deles, milhares de casinhas e sobrados vão se apinhando pelas montanhas. A maior parte dessas casas com os tijolos vermelhos a vista, como se faltasse tinta na Bolívia. Qualquer semelhança com as favelas brasileiras eu esperava que fosse mera coincidência.
Desde o aeroporto, o taxi foi praticamente se afundando na cidade, em direção à zona central onde ficava o Residencial Copacabana. Nome familiar é sempre bom, principalmente na primeira noite. Pela janela tudo muito estranho, bagunçado, diferente.
Mas apesar da estranheza que a cidade causa ao primeiro impacto, ainda é cedo para impressões definitivas. Já era noite e estava chovendo. Além disso, o primeiro sentimento foi bom. O povo aqui parece simpático, receptivo.
Amanhã tenho o dia todo para fazer a prova dos nove.
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Juro que o taxista me lembrou aquele do "Mulheres a Beira de um Ataque de Nervos" do Almodóvar. Bom, tá bom, não vamos exagerar. Não era o motorista, mas sim o táxi, cheio de tapetes coloridos espalhados pelos bancos e cobrindo o painel.
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Comi uma pizza muito boa num restaurante com o cardápio todo escrito em hebreu. Além disso, anexo ao restaurante havia um cybercafé cheio de gente jovem, todos parecendo se conhecer e falando uma língua esquisita. Nas paredes mais cartazes com dizeres hebraicos. Um verdadeiro kibutz no meio da Bolívia. Esquisito, no mínimo.