Thursday, December 19, 2002



DIA 3 - De La Paz à Copacabana

Estava programado para sair de La Paz às 8 da manhã. Seriam 3 horas de viagem até Copacabana. Bem, isso era o programado. O que aconteceu foi um pouquinho diferente.

O ônibus que peguei, se não era uma daquelas peruas de lotação que infestam La Paz assim como fazem com São Paulo, era um mini-ônibus, bem velhaco, que me trouxe uma lembrança no mínimo inusitada. De alguma forma me lembrou de um ônibus que Michael Douglas guiava no filme "Tudo por uma Esmeralda". Putz, daonde foi que eu tirei isso??

Talvez esteja sendo meio exigente, o ônibus não parecia tão ruim assim. Bem, não parecia, mas era. Ao pararmos na segunda agência de turismo para recolher outros passageiros, o dito busão não queria mais andar. Problemas com a ignição: lá se vão três bolivianos se enfiarem debaixo do ônibus, procurando o tal cabo desconectado.

Enquanto isso, no andar de cima, todos em clima de expectativa. Uma senhora, com pinta de religiosa, começou a pedir para que mudássemos de carro, que aquele já estava "malogrado", que Deus nos protegesse. Ótimo começo para uma viagem tranquila.

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Mas o tal mini-ônibus se comportou bem. Depois do começo conturbado, a viagem foi tranquila.

Até se chegar ao Lago Titicaca, a paisagem é bem árida e pobre. Um grande descampado marrom, sem árvores ou vegetação, se extendendo até o horizonte. A atração está ali, onde vê-se uma cordilheira de picos nevados. Ao chegar ao lago, é necessário cruzar um estreito através de uma balsa. Na verdade a tal balsa não passa de um barco de madeira, tanto que é preciso atravessar o estreito separadamente: passageiros num barco e busão no outro.

A partir dali a estrada passa a contornar as encostas do lago. O Titicaca é enorme e a paisagem vai ficando mais bonita à medida que subíamos. Ao mesmo tempo, as encostas bastante altas e a estradinha tortuosa faziam lembrar as perfeitas condições de manutenção do nosso querido ônibus.

Cada vez mais perto de Copacabana, a vegetação vai se tornando mais densa. Se chega à cidade por trás: ao cruzarmos uma das montanhas, avista-se Copacabana lá a frente, nas margens do Lago. Chamá-la de cidade é exagero, talvez "vila" seja mais apropriado. Mas uma vila famosa, local de migrações religiosas por abrigar a Catedral da Virgem de Copacabana, padroeira da Bolívia.

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Ainda na saída de La Paz, nosso ônibus, já cheio de mochileiros, parou na praça São Francisco para recolher mais alguns gringos e outros bolivianos.

Lotação completa, acabou sentando-se ao meu lado um daqueles tiozinhos que adoram puxar conversa e não se importam em contar a vida inteira para qualquer desconhecido. Um dia ainda aprendo a fazer isso.

Como ainda fui dando trela, o papo (ou melhor, o monólogo...) durou praticamente toda a viagem. O tiozinho era jornalista aposentado, peruano de Cuzco, foi radialista e narrador de futebol (pudera que falasse muito...) e era todo orgulhoso de ter tido um programa no rádio durante 44 anos. Além disso era uma espécie de católico praticante, já tinha viajado o mundo atrás desses congressos e encontros. Figuraça.

Ah, a mulher dele era aquela religiosa preocupada, que ficou colocando zica no ônibus antes de sairmos. Por algum motivo, ele não quis sentar-se ao lado dela...

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Uma das coisas a se fazer em Copacabana é visitar a Ilha do Sol, o berço mitológico do fundador do Império Inca, Manco Capac. Cheguei, almocei e fui. O tempo urge, minha gente...

Demora-se mais de uma hora para chegar a ilha. No meio do Lago Titicaca, eu e mais cerca de dez outros gringos estávamos instalados em cima do teto do barco, praticamente sendo congelados. A altitude ali fica perto dos 4000 metros acima do nível do mar, o que faz com que, mesmo com sol, o lago produza uma brisa polarmente agradável.

Como todos se unem nas dificuldades, antes de sermos congelados, começamos a conversar. Trocando idéias sobre os roteiros de cada um, em pouco tempo os grupinhos de afinidade já estavam formados. Nessas horas, o silêncio constrangedor não dura mais de dois minutos. E eu, que não tive tempo de me lembrar que era tímido, apenas me deixei levar pela maré. Quando vi, já tinha embarcado na conversa.

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O resultado é que minha viagem solitária durou dois dias. Em meia hora já estávamos combinando de ir a Machu Picchu todos juntos e naquela noite eu já estava jantando ao lado de mais 5 pessoas. As coisas mudam, e rápido.

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Carlos, jornalista brasileiro de uns 30 anos; Cláudio e Carla, casal de bolivianos, ele nascido e criado no Canadá; Stefânia, literata da Universidade de Bologna, 37 anos e perdida na estrada; Peter e Gail, casal quarentão inglês, figuraças dando a volta ao mundo há quase um ano. Todos entraram para a galeria dos personagens da estrada.

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É impressionante como os europeus começam a trabalhar tarde e, enquanto isso, aproveitam para passar o tempo viajando pelo mundo.

Ainda mais impressionante é como cada vez mais os gringos tiram férias de um ano, e, que fazer?, let´s travel around the world.

Ainda hei de descobrir se isso é herança do abençoado Estado assistencialista ou apenas resultado de alguma herança familiar abastada...

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Blues. Era o que ouvíamos enquanto traçávamos uma gostosa truta do Lago Titicaca. Uma truta temperada com bacon, que lhe dava gosto de salmão. Enquanto a truta era acompanhada por uma boa cerveja boliviana, eu e o Peter tentávamos adivinhar quem eram os bluseiros responsáveis por cada música. B.B. King, Howlling Wolf, John Lee Hooker... Todos ali muy bolivianos.

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Não pensei que ia voltar a dormir tontinho tão cedo...

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Gente legal é que nem grama, aparece em qualquer lugar do mundo...

Monday, December 16, 2002



DIA 2 - La Paz

Hoje o dia foi para gastar-se em La Paz. Amanhã já coloco o pé na estrada de novo, com destino a Cuzco. Saio logo bem cedo e vou para Copacabana, uma pequena cidade às margens do Lago Titicaca. Por lá decido se passo uma noite ou sigo direto para Puno, seis horas mais ao norte.

O dia não foi cheio, mas foi bastante cansativo. Esse tal de ar rarefeito me deixou assim, meio esquisito. Subo dois lances de escada e já fico ofegante. Tudo bem, o ar rarefeito mais os meus 7 quilos acima do peso. Além disso, a sensação é que o ar é muito seco, sinto uma baita ardência no nariz. Nos olhos também, algo como se fosse uma sinusite - apesar de nunca ter tido sinusite, imagino que seja assim. Hiponcondrices de lado, o bom é que esse dia serve de adaptação, pois as caminhadas daqui pra frente serão mais pesadas.

Agora estou cansado. Quero escrever mas não quero. Mas como ainda não aprendi a trair prazeirosamente os meus roteiros, me obrigo a escrever um pouco.

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Voltando ao assunto, gastei o dia em La Paz. Andanças pela região central, da calle Illampu à calle Sagámaga, passar pela Igreja São Francisco e descer a grande avenida até a Plaza de los Estudiantes, depois subir até a Plaza Murillo e o Palácio do Governo. Antes de qualquer coisa, a palavra que fica na cabeça é só uma: bagunça.

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A cidade é muito interessante. Com todas as coisas boas e ruins que essa qualidade pode esconder. Um cinturão de prédios que cresce no vale central, a partir do centro velho histórico. Ao redor, cercando toda a paisagem, as montanhas sobem quase todas cobertas por casinhas de tijolo vermelho.

Me volta à cabeça a idéia de favela. Não há barracos, mas aquelas casinhas sem reboque insistem em me lembrar dos morros brasileiros. Mas algo é diferente, não existe aquela sensação de ameaça, de violência. Ao andar pelas ruas não existe aquela sensação de medo que já é difícil de se evitar no Brasil. É claro, aqui pode acontecer algo também, deve acontecer algumas vezes, ainda bem que não aconteceu agora. Mas sente-se nas pessoas uma certa amistosidade, algo de inocência preservada. Ou, se quiserem ser cruéis, a pobreza aqui ainda possui resignação.

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A desorganização muitas vezes dá a impressão de desleixo. Supera a possibilidade de ser justificada pela pobreza, dá a impressão de ser proposital, por mais cruel que possa parecer pensar assim. Lógico, a pobreza é patente, e há poucos, muito poucos lugares onde se vê sinal do dinheiro.

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Mas dá o que pensar. E por isso a cidade é interessante. Num raciocínio raso, este 3º mundo é muito diferente do 3º mundo brasileiro. Na terra brasilis, vivemos diferenças descomunais e pagamos o preço da violência. Mas os minimamente sortudos (aqueles que, com eu e você, lêem textos na internet...), vivem em alguns oásis com condições e estrutura de 1º mundo. Não discuto se isso implica em alienação ou não, apenas digo que temos a possibilidade de viver regiões desenvolvidas, com as coisas boas e ruins trazidas pelo desenvolvimento.

Me perdoem a frase esdrúxula, mas as diferenças aqui são diferentes. A pobreza é generalizada. Não é a miséria faminta e sem-teto, coisa que se vê muito mais frequentemente no Brasil. Mas é muito mais geral e indiscriminada, refletindo uma condição de falta de recursos e de estrutura. Realemente não se vê muitos sinais de riqueza ou de desenvolvimento. Existem, mas estão muito dispersos, ou quem sabe, muito bem escondidos.

É como se aqui não fosse possível ter uma vida de classe média, colonizada, burguesa e confortável. É triste constatar que isso me estranha e assusta.

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O centro histórico é uma grande área que mistura a bagunça e quantidade de gente do Centro de São Paulo, com as igrejas e casarões coloniais de Ouro Preto. Raramente conservados.

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Subi até o último andar de um dos hotéis cinco estrelas da cidade para dar uma espiadela no mirante. A vista era incrível, disponíveis os quatro horizontes de La Paz. Vi pela primeira vez um imenso monte nevado (do qual não descobri o nome) escondido atrás da primeira fileira de montanhas que cerca a cidade. Neves eternas, acho que nunca tinha visto algo assim ao vivo.

Na verdade, o tal mirante trata-se das paredes de vidro do restaurante do hotel. Ao sair, rabo de olho no cardápio. Nem era tão caro assim... Jantei por ali mesmo. Acompanhado do tal monte-nevado-sem-nome, que foi indo embora enquanto as luzes da cidade se acendiam. Devo ser muito metido mesmo...

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As montanhas que cercam a cidade escancaram os subúrbios na cara da gente. De novo, não dá para fugir da sensação de se estar no meio de uma gigantesca favela. Sei que estou comparando bananas com laranjas, que estou estranhando as diferenças. Mas não tem jeito, caio no padrão brasileiro de novo. Mesmo quando estive no Rio não tive esta sensação. Ou tive?

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Tarde de soneca, revista, cochilo, livro. Mais tarde, arrumar a mala. E amanhã pé na estrada de novo...